Espiritualidade - Zen Budismo: As Quatro Nobres Verdades

...A primeira Nobre Verdade é que a vida é dukkha, normalmente traduzido como "sofrimento". ... a palavra era usada em pali com o significado de rodas cujos eixos estavam fora dos centros, ou de ossos que foram tirados dos seus encaixes. ... O sentido exato da Primeira Nobre Verdade é o seguinte: a vida (na condição em que se colocou) está deslocada. ... Está fora de centro. Como seu pivô não é real, a fricção (conflito interpessoal) é excessiva, o movimento(criatividade) está bloqueado e há dor.

... Buda não se contentou em generalizar sua Primeira Verdade... . Ele mostrou seis momentos em que o deslocamento da vida se torna claramente evidente. Ricos e pobres, medíocres ou bem-dotados, todos os seres humanos experimentam:

1. O trauma do nascimento. ... "envolve uma concatenação de sentimentos dolorosos, de descargas, de excitação e de sensações físicas que acabou se tornando um protótipo para as ocasiões nas quais a vida está ameaçada....

2. A patologia da doença. Todos os corpos adoecem, com maior ou menor freqüência, de forma mais ou menos graves, mais cedo ou mais tarde.

3. A morbidez da decrepitude. ...Nos anos finais, chegam os medos: medo da dependência financeira, medo de não ser amado nem desejado, medo da doença e da dor, medo de se tornar fisicamente repulsivo e dependente dos outros, medo de ver sua vida como um fracasso.

4. A fobia da morte. Com base nos anos de prática clínica, Carl Jung relatou ter descoberto que a morte é o maior terror de todo oa pacientes om mais de 40 anos que ele analisou.

5. Estar preso àquilo de que não se gosta. Às vezes pode-se romper com isso, mas nem sempre.

6. Estar separado daquilo que se ama.

A Primeira Nobre Verdade os une com duas conclusões, com efeito, duas dimensões mais profundas, mais penetrantes, do dukkha. ... Primeiro, ... tudo - dos mais simples prazeres os maiores êxtases - está sujeito à lei universal da impermanência (em sânscrito,anitya; em pali, anicca). Sempre que o coração humano anseia por satisfação duradoura, a impermanência assegura a presença do dukkha.

Segundo, não é apenas o mundo da experiência que apreendemos que é impermanente. Nós, os que apreendem, também somos. O Buda ensinava que aquilo que nos normalmente pensamos como nosso "eu" é, de fato, um produto em constante mutação dos cinco componentes co-condicionantes (skandhas),isto é, o corpo, as sensações, as percepções, as tendências de disposição e a consciência. Por estarem eles próprios tentando instintivamente, mas de forma ignorante, agarrar-se a um centro, um "eu" que não está lá, não são satisfeitos. "Os cinco grupos de apego são dukkha" diz o Buda. ... Os seres humanos são pegos num rodamoinho de energias que pouco entendem e, até que essa ignorância seja superada, a verdadeira alegria é frustrada.

Para que a ferida seja curda, precisamos conhecer sua causa, e a Segunda Nobre Verdade a identifica. A causa do deslocamento da vida é tanha ... normalmente traduzido como "desejo". Há algo de verdadeiro nisso, mas se tentarmos fazer com que "desejo" seja o equivalente a tanha, então teremos dificuldades. Para começar, a equivalência tornaria a Segunda Verdade inútil, pois acabar com os desejos, todos os desejos, no nosso estado presente, seria a morte, e morrer não resolveria o problema da vida. Mais que inútil, porém, a afirmação de equivalência seria totalmente errada, pois há alguns desejos que o Buda advogava explicitamente, o desejo pela libertação, por exemplo, ou pela felicidade dos outros.

Tanha é um tipo específico de desejo, o desejo de realização pessoal. Quando somos altruístas, somos livres, mas essa é exatamente a dificuldade - manter esse estado. Tanha é a força que rompe, nos trazendo de volta da liberdade total para buscar realização para o nosso própro ego ... Tanha consiste de todas

aquelas inclinações que tendem a continuar ou aumentar a separação, ...todas as formas de egoísmo, essência do qual é realização do próprio desejo à custa, se necessário, dos outros. Sendo a vida única, tudo o que tende a separar um aspecto do outro causa sofrimento à unidade que, quase sempre inconscientemente, trabalha contra essa Lei. Nossa tareda para com nossos semelhantes é compreendê-los como extensões de nós mesmos - facetas semelhantes da mesma realidade.

A Terceira Nobre Verdade segue de forma lógica a Segunda. Se a causa do deslocamento da vida é o anseio egoísta, ele cessa quando esse anseio é superado. Se pudéssemos nos libertar dos estreitos limites do interesse por nós mesmos e nos concentrássemos na vasta expansão da vida universal, seríamos libertados do nosso tormento.

A Quarta Nobre Verdade prescreve como a cura pode ser realizada. A maneira de se superar tanha, a trilha para fora do cativeiro, é por meio do Caminho Óctuplo.

...

O Caminho Óctuplo é, então, o programa de tratamento. ... Não é um tratamento realizado por meio de comprimidos, ou rituais, ou graça. Em vez disso, é um tratamento realizado por meio de treinamento. O Buda ... distinguia duas formas de se viver. A primeira - a maneira aleatória, não-reflexiva, na qual o sujeito é puxado e empurrado pelos impulsos e circunstâncias ... - ele chamou de "perambulação" . A segunda - a trilha do viver com intenção - ele chamou de o Caminho.

Que treinamento é esse do qual o Buda fala? Ele os divide em oito passos precedidos, porém, de um preliminar que ele não incluiu na sua lista, mas que mencionou com tanta frequência que podemos concluir que ele o estava pressupondo aqui. O passo preliminar é a associação correta.

Ninguém reconhece mais claramente que o Buda o quanto somos animais sociais, influenciados todas as vezes pelo "exemplo da companhia" dos nosos associados, cujas atitudes e valores nos afetam profundamente. Indagado sobre com se atinge a iluminação, o Buda respondeu: "Alguém que incita a fé aparece no mundo. Alguém se associa a ele." ...a associação correta é tão básica que se justifica um outro parágrafo.

Quando um elefante selvagem vai ser domado e treinado, a melhor forma de se começar isso é estar atrelado a outro que já tenha passado pelo processo. Por meio do contato, o selvagem é levado a perceber que a condição a que ele está sendo levado não é totalmente incompatível com sua natureza de elefante, ou seja, aquilo que se espera dele não contradiz categoricamente sua natureza, mas anuncia uma condição que, embora assustadoramente diferente, é viável. O exemplo constante, imediato e contagioso do companheiro ao qual está atrelado consegue lhe ensinar melhor do que qualquer outra coisa. O treinamento da vida espiritual não é diferente. A transformação que espera aquele que ainda não está treinado não é nem menor, nem menos exigente, que a do elefante. Sem evidência visível de que o sucesso é possível, sem uma contínua transfusão de coragem, o desânimo tende a aparecer. ... Uma das três coisas pelas quais devemos agradecer diáriamente, de acordo com o Buda, é a companhia do sagrado.

...

Tendo dado esse passo preliminar, podemos prosseguir com os oito passos do Caminho, propriamente ditos.

1. Visões Corretas - ... [sobre a razão] Se tem ou não o poder de seduzir, claramente o tem de vetar. Até que a razão seja satisfeita, um indivíduo não consegue proceguir sinceramente em nenhuma direção.

2. Intenção Correta - enquanto o primeiro passo nos convida a perceber basicamente qual é o problemas da vida, o segundo aconselha a pôr o nosso coração naquilo que realmente queremos. É realmente a iluminação, ou nossos afetos balançam de um lado para outro, mergulhando como pipas a cada corrente de distração? Se tencionamos ir longe, a persistência é indispensável. ...

3. Discurso Correto - nos três próximos passos, tomamos as rédeas que controlam nossa vida, a começar pela atenção a línguagem. Nossa primeira tarefa é nos tornarmos conscientes do nosso discurso e daquilo que ele revela sobre o nosso caráter. Em vez de começarmos com a decisão de não falar nada além da verdade - uma decisão que tende a se provar ineficiente para se começar, pois é muito avançada -, faremos bem se começarmos bem antes, tentando perceber quantas vezes ao dia nos desviamos da verdade e irmos adiante perguntando por que fizemos isso. E, de forma semelhante, com o linguajar inclemente. Não começamos decidindo nunca mais dizer uma palavra grosseira, mas observando nossa fala para nos tornarmos conscientes dos motivos que causam essa grosseria. Que falta de caráter precisamos proteger com esse desvio da verdade?

Depois desse primeiro passo ter sido razoavelmente dominado, estaremos prontos para tentarmos algumas mudanças. O terreno já terá sido preparado, pois uma vez que nos tornamos conscientes da maneira como falamos, a necessidade de mudança fica evidente. Em quais direções as mudanças devem seguir? Primeiro em direção à veracidade. O Buda abordava a verdade mais ontologicamente que moralmente; ele considerava o logro mais uma tolice que um mal. ... Por que logramos? Atrás das racionalizações, o motivo é quase sempre o medo de revelar aos outros ou a nós mesmos aquilo que realmente somos. A cada vez que cedemos a esse "recurso protetor", as paredes do nosso ego ficam mais espessas e nos aprisionamos ainda mais. Esperar que possamos abrir mão das nossas defesas de um só golpe é irreal, mas é possível nos tornarmos progressivamente conscientes delas e reconhecer as formas como elas nos aprisionam.

A segunda direção para qual nossa fala deve ser direcionada é a da caridade. Falso testemunho, conversas fúteis, fofocas, calúnia e difamação devem ser evitados, não apenas nas suas formas mais óbvias, mas também nas veladas. As formas veladas - subestimar sutilmente, falta de tato "acidental", cinismo - são freqüentemente mais maldosas, pois suas intenções são veladas.

4. Conduta Correta - aqui, também, a advertência (conforme o Buda a detalhou nos seus últimos discursos) envolve um chamado para se compreender nosso comportamento mais objetivamente antes de tentar melhorá-lo. O treinando deve refletir sobre suas ações com vista aos motivos que as provocam. Quanta generosidade havia nelas e quanto se buscava satisfazer o eu? Quanto a direção que a mudança deve tomar, o conselho é novamente em direção ao altruísmo e à caridade. ...

5. Correto Viver. A palavra "ocupação" é bem delineada, pois nosso trabalho realmente toma a maior parte da atenção que temos quando estamos despertos. Buda considerava impossível o progresso espiritual se a característica da ocupação que se exerce resiste a ele: "A mão do tintureiro fica manchada pela tinta com que trabalha." ...

Daqueles que têm muita intenção de se libertarem, a ponto de dedicarem sua vida inteira ao projeto, o correto viver requer se unir à ordem monástica e se submeter à sua disciplina. Para o leigo, pede que se engaje em ocupações que promovam a vida, em vez de destruí-la. ...

A tradição budista agrupa o terceiro, o quarto e o quinto passos sob o título de sila, moralidade, deixando claro que o inapto moral não se arrisca a despertar a fúria de uma divindade, mas a retardar seu próprio desenvolvimento interior. Tentar progredir na meditação budista sem purificar seus atos é como tentar cavalgar um cavalo firmemente preso a um poste. Para o Buda, moralidade não é meramente uma preliminar a ser abandonada nos últimos estágios da iluminação, mas o acompanhamento e a conseqüêcia da vida meditativa. A virtude é a semente e o fruto da iluminação.

6. Esforço Correto. O Buda pôs uma tremenda ênfase na vontade. alcançar uma meta requer um imenso empenho. Há virtudes a serem desenvolvidas, paixões a serem reprimidas e estados mentais destrutivos a serem expurgados para que a compaixão e o desapego possam ter uma chance. ... Capricho - um baixo nível de vontade, um mero desejo desacompanhado de esforço ou de ação para realizá-lo - não funcionará.

... se o esforco for aplicado com muita forca, ele resultará em inquietação; se for fraco demais, levará a lassidão. Mantenha, portanto, seu esforço equilibrado.

Os dois últimos passos do Caminho Óctuplo talvez representem o aspecto mais característico do ensinamento do Buda, isto é, a importância fundamental da prática da meditação. ... A palavra que o Buda usava para "meditação" era bhavana, "desenvolvimento mental", ou "cultivo da mente", uma tarefa que envolve tanto a correta concentração (o oitavo passo) quanto a correta atenção (0 sétimo passo). ...


7. Correta Atenção. Nenhum mestre deu tanto crédito à influência da mente sobre a vida quanto Buda. O mais amado de todos os textos budistas, o ... Dhammapada, abre com estas palavras: "Tudo o que somos é o resultado do que pensamos. Nossa vida é moldada pela nossa mente. Nós nos tornamos aquilo que pensamos. O sofrimento segue o pensamento insalubre, da mesma forma que as rodas da carroça seguem os bois que as puxam. A alegria segue o pensamento daudável como a sombra que nunca parte." E com relação ao futuro, há o ditado: "vocês querem prever suas vidas futuras? Examinem a condição da sua mente presente."

O Buda aconselha tanto a auto-análise contínua que parece desencorajadora, mas ele achava que ela era necessária por acreditar que a libertação da existência inconsciente, autômata, é apenas alcançada pela consciência refinada. Para se atingir esse fim, ele insistia que devemos buscar compreender profundamente a nós mesmos, vendo tudo nos nossos estados mentais e físicos como realmente é. Se prestarmos uma atenção constante nas nossas disposições e nos nossos pensamentos, nas nossas ações e sensações físicas, perceberemos que elas surgem incessantemente e desaparecem, não sendo de maneira alguma parte permanente de nós. A correta atenção tem como objetivo testemunhar todos os eventos físicos e mentais, inclusive nossas emoções, sem reagir a eles, sem condenar alguns nem se prender a outros.

Por meio da prática da atenção correta, alcançamos, então, inúmeros lampejos intuitivos. Começamos a ver que ... todo estado físico e mental está no seu fluxo, nenhum é sólido ou duradouro; ... que o apego habitual a esses estados impermanentes está na raiz de grande parte do dukkha da vida e que esses lampejos intuitivos enfraquecem esse hábito; e ... que temos pouco controle sobre nossos estados mentais e sensações físicas, bem como normalmente temos pouca consciência das nossas reações. Mais importante, começamos a perceber que não há ninguém por trás dos eventos físicos e mentais, orquestrando-os. Quando a capacidade de atenção consciente é refinada, fica claro que a própria consciência não é contínua. Como a luz de uma lâmpada, o ligar e o desligar são tão rápidos que a consciência parece ser constante, quando de fato não é. Com esses lampejos intuitivos, a crença num eu separado que existe por si mesmo começa a se dissolver e a liberdade a surgir.

8. Concentração Correta. Embora a concentração correta seja tradicionalmente listada como o oitavo passo, de muitas formas ela vem antes da atenção correta, pois para se realizar efetivamente os exercícios de atenção, deve-se primeiro aprender a focar a própria mente. Para esse fim, o Buda aconselha tentar, pacientemente e persistentemente, sustentar a atenção total num único ponto, o mais comum seria simplesmente a própria respiração. tentativas iniciais de concentração são inevitavelmente esfaceladas por distrações. Vagarosamente, porém, a atenção fica mais aguçada, mais estável, mais sustentada. Durante os primeiros dias de alguns treinamentos de meditação budista, o esforço pode ser dirigido apenas à concentração, antes de se passar para os exercícios de atenção. Mas a concentração não acaba onde começa a atenção. De fato, são mutuamente reforçadas ... .

...Como uma câmara fotográfica, a mente não foi bem focalizada, mas o ajuste foi feito agora. Os três venenos - ignorância, anseio e aversão - começam a evaporar, e nós vemos que as coisas não são como supúnhamos que fossem. De fato, suposições de todos os tipos começam a desaparecer para serem substituídas pela percepção direta.

SMITH, Huston, NOVAK, Philip. Budismo - Uma Introdução Concisa. Trad. Claudio Blanck. 2003, Editora Cultrix: São Paulo.

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